Dores são traiçoeiras. Num belo dia, surge uma de repente e, do nada, ocupa o centro das atenções. Uma pontada e pronto. A mobilidade comprometida, os compromissos adiados, a paciência abalada. Mas quando o pior passa, em alguns casos tão sorrateiramente quanto se inicia e em outros à custa de longos tratamentos, não demoramos para esquecer o quanto elas nos mobilizaram enquanto estavam presentes. O alívio nos leva ao conforto do não-lembrar. É assim também com a centralidade das presenças incômodas da vida.
Passamos quatro anos lidando diariamente com a intolerância oficial gritando em discursos, reverberando em manchetes na imprensa, postagens nas redes sociais. Uma rotina que causava reações diversas: de apenas uma sensação de desagrado a uma profunda indignação que estragava o dia. Quando nas urnas, em outubro de 2022, a maioria da população disse “basta!” ao ódio como política hegemônica, não abrimos as portas do paraíso, mas nos livramos de um inferno diário que intoxicava, comprometia a saúde mental e o convívio social.
Como seguir ileso ao ouvir absurdos diários proferidos pelo então presidente Jair Bolsonaro, como a ameaça dirigida a um jornalista de “encher a tua boca de porrada”; a referência à tortura na ditadura civil-militar como “cascata”; a classificação de “criminoso”, “otário”, “canalha” e até “filho da puta” a ministros do Supremo Tribunal Federal; a afirmação de que “pintou um clima” com meninas de 14, 15 anos; o desprezo pelas vidas perdidas na frase “não sou coveiro”?
O ano de 2023 não foi o que marcou a eliminação do discurso de ódio como um dos principais problemas no Brasil, mas foi certamente o que o deslocou para fora do palanque presidencial. Não que nos discursos do presidente Lula não tenham também escapado expressões agressivas, como quando classificou de “animais selvagens” as pessoas que hostilizaram o ministro Alexandre de Moraes na Itália em julho. Mas é inegável que essas foram exceções à regra e que não há como apresentar falsa equivalência com Bolsonaro, como muitas vezes se insiste em fazer.
Um dos muitos dados que embasam a argumentação de que vivemos novos – e melhores tempos – diz respeito ao tratamento dispensado aos jornalistas. Somente em 2022, segundo levantamento da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Jair Bolsonaro foi o principal agressor da imprensa, sendo responsável por 104 episódios que incluem descredibilização e agressão direta a esses profissionais. Antes mesmo de tomar posse, em novembro do ano passado, o presidente Lula afirmou às equipes de jornalismo que elas “não vão ser violentadas verbalmente por um presidente da República”. A promessa foi cumprida e o primeiro ano do mandato foi marcado pelo respeito e retorno às entrevistas coletivas, não só para os veículos tradicionais brasileiros e para a imprensa internacional, mas também para a mídia alternativa. Ou seja, a volta de um convívio democrático.
A mudança não diz respeito apenas ao presidente. As falas das autoridades federais em 2023 deixaram de ser, como rotina, marcadas pela intolerância e pelo desrespeito. Ainda que tenham ocorrido, no governo atual, episódios isolados como o do ministro Fernando Haddad, que se irritou com jornalistas durante uma entrevista coletiva. Como regra, se percebe um efeito em cadeia que, ainda que lentamente, muda a normalidade e a prática diária da população. Isso não é pouco
A experiência mostra que a violência na sociedade é muitas vezes estimulada por palavras, o que foi traduzido com precisão pelo Conselheiro Especial para a Prevenção do Genocídio da Organização das Nações Unidas, Adama Dieng: “temos de lembrar que crimes de ódio são precedidos por discurso de ódio”, alertou em 2019. Não por acaso vivemos no Brasil durante os anos do governo Bolsonaro o aumento dos crimes contra as minorias, dos feminicídios, dos assassinatos da população LGBTQIAPN+, dos ataques às religiões de matrizes africanas, dos casos de racismo. O estímulo oficial tem sua responsabilidade neste quadro dramático.
Parlamentares, na maioria bolsonaristas, seguem buscando impacto e viralização através da agressividade e dos ataques aos opositores e às minorias. No entanto, sem o respaldo presidencial, o espaço para os absurdos se limita e as portas do inferno vão tendo suas aberturas reduzidas.
Não, ainda não estamos caminhando para o paraíso. A extrema direita segue firme e encontrando eco entre os seguidores. Combater o discurso de ódio e a desinformação, como apontou o presidente Lula no seu discurso de Natal, segue sendo um desafio prioritário. O professor Michel Gherman, da UFRJ, tem ressaltado que o bolsonarismo promoveu uma espécie de “alfabetização da extrema direita”. O desafio agora é, como ele aponta, “avançar em direção a uma alfabetização antifascista e pró-democrática”.
Na despedida de 2023, merecemos comemorar este ano em que o ódio desceu do púlpito presidencial. Devemos aproveitar a sensação de não ter mais a dor latente nos incomodando diariamente, mas não podemos esquecer que o alívio não é cura. E que, depois do brinde a 2024, é indispensável voltar a tratar da doença, para que ela não nos atinja novamente de forma avassaladora como no passado.
Rosangela Fernandes, coordenadora do CRIAR Brasil e doutoranda ECO/UFRJ
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