É preciso falar sobre a Ditadura Militar. E sobre a conivência da mídia

Quase 60 anos depois do golpe de 1964, o Brasil necessita mais do que nunca falar sobre as mais de duas décadas do regime militar. Este ano, não haverá leitura da Ordem do Dia em 31 de março alusiva ao golpe, decisão anunciada pelo Ministério da Defesa do governo Lula, que quebra uma sequência de quatro anos ininterruptos em que o início da sangrenta ditadura militar era comemorado pelas Forças Armadas.

O rompimento do ciclo de celebrações do golpe, enaltecido pelo governo de extrema direita que esteve no comando do país de 2019 a 2022, é um aceno fundamental para que revisitemos os 21 anos de ditadura. Não se trata de revolver o passado em tom revanchista, mas sim de um processo fundamental para que possamos sufocar o fascismo e garantir a democracia e todas as instituições que lhe dão suporte. E para isso é indispensável também refletir sobre a parte que cabe à mídia nesse processo de ataque à democracia. 
 
Os últimos quatro anos, caracterizados por uma avalanche que varreu direitos duramente conquistados após a redemocratização, foram a culminância de um outro golpe, não militar, mas parlamentar, que encontrou terreno fértil e suporte em um país que não fez o resgate necessário da memória da ditadura, e abriu mão de investigar e punir os responsáveis pelas amplas e inúmeras violações cometidas no período. Um Brasil em que os golpes são apoiados pela imprensa sem pudor ou qualquer tipo de punição.

A Comissão da Verdade, instituída em 2012, tentou abrir essa clareira e avançou em vários pontos. Investigou, ouviu e contabilizou muito do que aconteceu durante os anos de chumbo. Pelo menos 434 pessoas morreram ou desapareceram durante a ditadura militar. Quase dois mil prisioneiros políticos disseram ter sido torturados entre 1964 e 1979, segundo o relatório “Brasil: Nunca Mais”. Pau-de-arara, choque elétrico, afogamento, cadeira do dragão, estupros, ameaças, espancamentos. Essa foi a rotina vivida por pessoas presas pelo fato de se oporem à ditadura e sem direito à defesa graças aos sucessivos Atos Institucionais que respaldaram o autoritarismo. Ninguém era poupado: grávidas e até crianças tiveram os direitos violados e foram vítimas de atos de violência.  Um passado recente e doloroso que não pode ser apagado. O governo Lula, em caminho oposto ao de seu antecessor, promoveu este ano a “Semana do Nunca Mais” e acena com a possibilidade de retomar a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos.

É preciso falar exaustivamente sobre esse período e tudo o que aconteceu sob a tutela do Estado brasileiro. É necessário mostrar as atrocidades cometidas e as consequências delas nas vidas de milhares de famílias e na democracia brasileira. É fundamental analisar o papel da mídia e de outras instituições no período. O apoio prestado no passado por veículos de imprensa à ditadura não pode ser esquecido. A mesma mídia que normalizou o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff em 2016. Assim como não pode ser subestimado o atual espaço que a defesa do arbítrio e da tortura ainda encontram nas plataformas de redes sociais e também na mídia tradicional. A permissividade e conivência com tais atos, marcados pelo discurso de ódio, se constituem em estímulo à intolerância que se entranha na sociedade e segue causando vítimas. Quem busca notoriedade através do enaltecimento das práticas bárbaras de tortura não pode ficar impune. Assim como os veículos de comunicação que reverberam esses ataques à democracia também precisam ser responsabilizados.  

Não celebrar o 31 de março é um passo inicial importante para reabrirmos os arquivos, juntar forças e fazer a avaliação necessária dos chamados “anos de chumbo”. E também uma sinalização para que a comunicação se faça de forma responsável, sem permissividade que vem se traduzindo em estímulo ao ódio. Trata-se de um esforço coletivo imprescindível. Sem ele, seguiremos vulneráveis à extrema direita, que se mantém organizada e à espreita, e colocamos em risco os pilares democráticos.

Por Isabelle Gomes, jornalista CRIAR Brasil e Rosangela Fernandes, Coordenadora CRIAR Brasil/Pesquisadora PEIC/UFRJ